Ilustração mostra Amanda escrevendo. Ao fundo, páginas de livros e representações das grades do cárcere

De Tambaba à prisão: a história de Amanda Karoline

Em seu livro, a escritora potiguar detalha os abusos e violências que sofreu por parte do marido, assim como sua passagem pelo cárcere

Por Amanda Stabile

23|01|2024

Alterado em 24|01|2024

“Aos 12 anos de idade, conheci Rômulo, a quem imaginei ser o pai dos meus filhos e companheiro para toda a vida. Mas aquele conto de fadas foi se desfazendo ao longo de meses e anos de convivência”, relata Amanda Karoline, autora de De Tambaba à prisão: uma trama real de violências e abusos no paraíso do nudismo brasileiro (2021, Unilivreira).

Foto mostra Amanda Karoline segurando seus livros. Ao fundo, o mar da praia de Tambaba

"Eu não me resumo a uma ex-presidiária, eu também sou escritora", conta Amanda.

©sathurzo

Referenciada no título da obra, a praia de Tambaba, em João Pessoa (PB), foi a primeira do Brasil a permitir o naturismo por lei municipal, em 1999. Desde então é permitido ficar nu em áreas demarcadas da orla. É nesse cenário que uma parte importante da história que levou a escritora ao cárcere aconteceu.

“Eu não me resumo a uma ex-presidiária, eu também sou escritora. No livro, conto toda a minha história em detalhes. Pode-se dizer que não abordo só a minha experiência, mas também a de tantas outras mulheres que não estão mais aqui para contar os abusos e violências que enfrentaram”, pontua.

O começo

[AVISO DE GATILHO: violência doméstica e sexual]

Filha de dona Mônica e seu Ailton, Amanda Karoline nasceu em 27 de novembro de 1992, em Natal, no Rio Grande do Norte. “Eu sou potiguar e minha família é bem pequena: só eu e mais dois irmãos, eu sou a única menina. Meu pai é o único provedor e minha mãe é dona de casa”, complementa.

Certo dia, em outubro de 2006, Rômulo, um primo de seu pai, os visitou. Amanda tinha apenas 13 anos e o homem 21 quando lhe pediu um beijo pela primeira vez:

– Não posso, porque meu pai não deixa e posso engravidar – eu disse.

– Engravidar? Por que engravidar com um beijo? – ele perguntou.

– Não sei – respondi. – É o que meu pai conta”

Rominho, como era conhecido, começou a voltar com frequência, insistindo em um relacionamento com a menina, mas pedia segredo. “Eu não contava porque tinha medo do meu pai me proibir de ficar com ele e eu já estava apaixonada”, conta Amanda em seu livro. Após descobrirem, os pais permitiram o namoro, mas com algumas regras.

“Olha, Rominho, Amanda não tem idade de namorar ainda. Por mim, vocês não namoram, mas como o pai dela faz tudo o que ela quer, eu e ele conversamos e por você ser primo dele, vamos deixar”, falou a mãe. “Mas quando você vier do interior e for dormir aqui, ela vai dormir com a gente no quarto e você dorme no dela”.

Apesar de prometer, logo o homem a abusou sexualmente sob o pretexto de ser uma prova de amor. Do contrário, a deixaria. Amanda manteve silêncio sobre isso por quase um ano até seus pais descobrirem. Não foi expulsa de casa, mas aos 15 anos foi levada ao cartório pelos pais para se casar.

Depois de descobrirem que a lei só permitia a união a partir dos 16 anos de idade (com a permissão dos responsáveis), concordaram que Amanda morasse com Rominho com a promessa de que se casariam assim que possível – o que aconteceu em março de 2009. As agressões começaram logo no primeiro dia juntos na nova casa alugada.

“Servi nossa refeição, pegamos nossos pratos e fomos comer no quarto, sentados no chão. Quando coloca a primeira colherada na boca, Rominho cospe e esbraveja:

– Tu só faz merda! Nem os cachorros comeriam essa comida. Dá vontade de jogar na sua cara!”

As violências foram escalonando. Dos gritos, Amanda começou a ser agredida fisicamente, era constantemente ameaçada e foi proibida de frequentar a escola. Ele sempre se desculpava, dizia que não ia se repetir e pedia para ela não contar a ninguém o que tinha acontecido. “Por medo e vergonha, eu não consegui falar para minha família e nem denunciar”, conta Amanda. “Eu acredito muito que a Lei Maria da Penha tem ajudado, mas ainda tem muito a ser mudado. Quantas mulheres são mortas todos os dias? Esse foi o meu medo”.

Em Tambaba

Eu fui deixando passar até que vieram as agressões sexuais. Foi quando ele me obrigou a ter relações com outros parceiros. Então eu dei um basta no meu sofrimento, aos meus 23 anos. Eu contratei uma pessoa para executá-lo.

Aos 17 anos, Amanda Karoline conheceu Tambaba pela primeira vez, levada pelo marido. Não queria ficar nua, mas foi obrigada por ele aos tapas. As visitas à praia se tornaram comuns e conheceram outros casais. Eles frequentemente eram convidados para fazer trocas de pares.

“– Rominho, eu não vou fazer isso.

Ele me pegou pelos cabelos e meteu minha cabeça na parede”.

Além dos abusos a que Amanda era submetida, o homem começou a ameaçá-la de morte e jurava fazer o mesmo a seus pais. Em 2016, cansada das violências, ela resolveu seguir o conselho de uma amiga da academia que a viu cheia de hematomas: “por que você não manda matar ele?”.

Sua primeira reação foi achar a proposta uma loucura, mas ficou pensativa. Iria lhe custar R$5 mil. No livro, ela conta: “a minha consciência pesava em saber que não era a decisão correta. Porém, não mudaria de ideia”. Assim, em 18 de agosto, Rominho foi baleado e morreu no hospital.

O cárcere e a escrita

Foto mostra Amanda Karoline segurando seus livros. Em uma das pernas, Amanda tem uma tornozeleira eletrônica. Ao fundo, o mar da praia de Tambaba

"Eu falo coisas no livro que eu jamais imaginei revelar", explica a escritora.

©sathurzo

Amanda Karoline foi presa em 13 de dezembro de 2016, aos 24 anos, acusada de ser a mandante do assassinato de seu marido. Levada a júri popular em novembro de 2019, foi condenada a 19 anos de reclusão, pena que, após recurso, foi reduzida para 15 anos, sete meses e 15 dias em regime fechado.

“Não considero correto o que eu fiz. Não quero romantizar. Mas é fácil a gente falar que se arrepende quando tudo já passou”, comenta. A escritora acredita que conheceu uma sociedade antes e outra depois de sua prisão. “Hoje é muito normal, as pessoas me olharem e me julgarem por um crime que eu cometi, mas ninguém vê a minha vida passada e tudo o que eu perdi pelo um crime que eu cometi”.

Amanda achou que tivesse acabado com sua vida, até que encontrou um propósito por meio da escrita. “Uma policial penal aqui do Rio Grande do Norte, a Joana Coelho, me mostrou a luz lá no fim do túnel. Ela disse: ‘Não acabou, tá na hora de você contar sua história’”. Joana também participou do projeto como idealizadora e fotógrafa.

No começo, Amanda resistiu à ideia, considerando seu relato algo muito pessoal. “Acredito que se eu não tivesse sido presa, ninguém nunca saberia pelo que eu passei. Minha família não saberia quem ele era porque eu vivia num casamento que parecia extremamente bem sucedido para a família”, recorda.

No presídio, ela retomou os estudos e decidiu vencer a vergonha, colocando sua própria história no papel. Concluiu a escrita em 2020 e descreve a experiência como algo libertador, uma forma terapia quando ainda estava em cárcere.

“Eu falo coisas no livro que eu jamais imaginei revelar. Ele tem uma linguagem simples e bem objetiva porque eu acredito que a violência não pode ser romantizada. Ela tem que ser mostrada da forma como acontece”, pontua.

Hoje, Amanda cumpre sua pena fora de estabelecimento penal por meio de tornozeleira eletrônica. Em seus planos futuros está a publicação de um segundo livro, sobre o tempo que passou em cárcere. “E quem sabe vem agora um terceiro falando sobre a hipocrisia da sociedade e sobre como o Estado cobra, mas dificilmente ressocializa alguém”.

É possível adquirir o livro “De Tambaba à prisão: uma trama real de violências e abusos no paraíso do nudismo brasileiro”, entrando em contato com Amanda Karoline via redes sociais (@amanda_diario, no Instagram). O envio pelos Correios é feito para todo o Brasil.


Este texto faz parte da série “Cárcere e Literatura”, que narra as histórias de mulheres autoras que encontraram na prisão uma expressão poética e cultural. A série destaca a resiliência dessas mulheres e o poder transformador da literatura.